Croácia: o outro lado tem uma história muito grande para contar
"Nunca desista". Essas foram as palavras escolhidas por Luka Modric em suas redes sociais após a histórica vitória nos pênaltis contra o Brasil. Pela terceira vez em suas seis Copas do Mundo, a Croácia está classificada para as semifinais. Podemos destacar a atuação monstruosa de Modric, as alterações táticas feitas por Zlatko Dalic que anularam valências da seleção brasileira, valorizar também o jogo praticamente perfeito de Josko Gvardiol ou mais uma vez o decisivo Dominik Livakovic... Mas há algo a mais, que vai além dos aspectos de análise em uma partida de futebol.
Muitos dos jogadores que estão no Qatar sofreram diretamente consequências da guerra de independência da Croácia entre 1991 e 1995, que deixou mais de 15 mil mortos do lado croata, além de 300 mil pessoas deslocadas. Luka perdeu seu avô, assasinado por rebeldes sérvios e cresceu como refugiado dentro de seu país; Dejan Lovren foi obrigado a fugir da Bósnia com seus familiares e encontrou em território croata seu novo lar, situação similar vivida por Ante Budimir; Mateo Kovacic nasceu em Linz, na Áustria, onde sua família vivia após fugir dos conflitos nos Balcãs. Os mais jovens, como o promissor Gvardiol, já nasceram em uma Croácia em paz, mas seus parentes carregam consigo as marcas da guerra e a capacidade de resistir. Essa valentia é levada para campo.
Há pouco mais de quatro anos, quando a França venceu a Croácia na final da Copa na Rússia por 4 a 2, os torcedores croatas deixaram o estádio Luzhniki em enorme festa. Cantavam como se tivessem acabado de conquistar a Copa. Na verdade, cantavam o orgulho de vestir a camisa quadriculada de sua seleção e exibir para o mundo e os milhões de estrangeiros em uma competição como essa a bandeira de sua nação de apenas 31 anos. Diversos desses jogadores no Qatar são mais velhos do que o estado croata como conhecemos oficialmente hoje.
É muito comum, em entrevistas de jogadores que tiveram suas vidas afetadas pelas guerras da Iugoslávia, citarem esse período como exemplos de resiliência. "Ter vivido uma guerra nos ajuda em campo", disse Budimir em entrevista ao La Vanguardia no ano passado. O sentimento de pertencimento e agradecimento é constante nas palavras dessas pessoas. Budimir mesmo, em outra entrevista, exemplifica de maneira ainda mais dura o que é carregar esse passado ainda recente: "Há pessoas que deram suas vidas para que eu tenha a minha."
São menos de quatro milhões de habitantes em um país cujas dimensões não ultrapassam 57 mil km2 e apaixonado por futebol. Desde quando se filiou à Fifa e passou a disputar as eliminatórias, são seis Copas na história dos croatas e apenas uma na qual não se classificou (2010). Não há meio-termo nas participações: três vezes eliminada na fase de grupos, três vezes ao menos nas semifinais. Na histórica Copa de 1998, sob o comando de Davor Suker, a Croácia parou na França de Lilian Thuram. Na Rússia, um time até mesmo superior ao atual não suportou a maior força de Kylian Mbappé e companhia francesa. Agora terá a Argentina pela frente após derrubar o favorito Brasil.
As imagens das celebrações em Zagreb indicam o tamanho enorme desta classificação. Dalic pode ficar orgulhoso de seus jogadores e também de suas decisões. Ao adiantar Modric em campo, deixando-o à frente de Brozovic e Kovacic, mudando taticamente seu time do 4-3-3 na fase ofensiva para o 4-2-3-1 e sem a bola do 4-1-4-1 para o 4-4-1-1, Dalic demonstrou total conhecimento do adversário e preparação feita nos detalhes para o confronto. O posicionamento de Modric tirou Casemiro do jogo, fechando as linhas de passes na saída de bola brasileira e deixando intencionalmente a responsabilidade na iniciação ofensiva com Danilo. Vinicius Júnior estava sempre com marcação dobrada, e Josip Juranovic cansou de aproveitar os espaços em suas costas. Neymar e Lucas Paquetá frequentaram um setor do campo dominado por Kovacic e Brozovic.
Méritos e mais méritos de um time croata valente. Que acima de tudo não desistiu em momento algum. Lutou e resistiu enquanto pôde, e quando o talento do camisa 10 do Brasil desequilibrou, a valentia croata foi colocada à prova. Zlatko Dalic sabe que não tem o melhor time croata da história em mãos - ele mesmo admitiu que a equipe de 2018 era melhor. Houve renovação, alguns jovens chegaram, alguns veteranos saíram. Só que desistir não é uma opção. A assistência de Mislav Orsic para Bruno Petkovic, companheiros no Dínamo Zagreb, garantiu o gol mais tardio na história das Copas aos croatas. A partir daí estava claro que não perderiam nos pênaltis, e assim o fizeram: permaneceram com recorde perfeito em disputas de penalidades nos Mundiais, com quatro vitórias nos dois últimos torneios.
Davor Suker já foi citado. Há também Zvonimir Boban, Robert Prosinecki, Alen Boksic, Mario Mandzukic, Darijo Srna. E existe Luka Modric. Logo no início da partida contra os brasileiros, quando o meio-campista de 37 anos do Real Madrid toca na bola e dá o pontapé inicial, Neymar e Richarlison partem em disparada para pressionar Marcelo Brozovic. Modric finge que vai avançar, para e volta, aparecendo livre para receber o passe do companheiro. Faltando cinco minutos para acabar a prorrogação, é ele quem inicia a jogada do gol de Petkovic ainda na intermediária defensiva. Nos momentos derradeiros, se entregava na marcação, queria a bola para criar e entregava sua alma em campo. Uma aula de dedicação e entrega.
E ao final, com festa croata e o choro brasileiro no Estádio Cidade da Educação, em Al Rayyan, parou para consolar seus amigos. Como grande capitão e exemplo que é.
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