Balões, bambolês e bonés: como um brasileiro está inovando os treinamentos na NBA
Quando Nandes chegou ao ginásio de treinamentos do Phoenix Suns, os jogadores se assustaram. Assim que o brasileiro começou a colocar os equipamento de trabalho sobre uma mesa, a curiosidade tomou conta de todos. Balões, bambolês, lasers, bonés, óculos de várias cores... Tudo aquilo para um treino de basquete.
A equipe do Arizona não é, definitivamente, a melhor da NBA. Muito longe disso, mas mesmo assim possui no elenco jovens e talentosos jogadores, como o armador Devin Booker e a primeira escolha do último draft, Deandre Ayton. Além deles, tem ainda veteranos como Ryan Anderson, há dez anos na liga. Todos se surpreenderam com o que viram nas quadras dos Suns.
Fernando Pereira, mais conhecido como Nandes, tem 30 anos, foi jogador de basquete, é formado em educação física, professor da UniBH e atualmente trabalha no Instituto Superação e no Minas Tênis Clube, nas categorias sub-13 e sub-15, além do desenvolvimento de jogadores da equipe profissional que joga o NBB. Ele criou uma metodologia de treinamentos focada na cognição e na ação. Ou seja, exercícios específicos para criar autonomia de membros e sobrecargas motoras e perceptivas, com o intuito de aproximar ao máximo um movimento de treino ao que se realiza em um jogo.
Booker, ainda com a mão direita imobilizada por causa de uma cirurgia, participou de uma atividade com balões. Cercado por quatro treinadores e sob o comando de Nandes, batia a bola, recebia passes e não podia deixar os balões tocarem o chão. Outros atletas trabalharam com bambolês, bonés e até mesmo bolas de futebol, como Dragan Bender.
"Qualquer objeto é um elemento. A bola é o elemento um, o bambolê ou o balão é o elemento dois. O bambolê serve para ocasionar sobrecarga motora. Enquanto tem o elemento um em uma mão, o atleta tem o elemento dois na outra fazendo outro movimento dentro do programa motor. O cérebro precisa criar autonomia de membros, porque se ele faz uma coisa de um lado e outra do outro, isso se chama dissociação. No jogo, os atletas estão o tempo todo sob sobrecarga, marcados, com a mão precisa se deslocar entre os defensores e a bola precisa ser conduzida automaticamente. Colocar outros elemento significa 'enganar' o cérebro. O balão é um pouco parecido, também como outro elemento, mas é uma sobrecarga perceptiva, porque é um elemento aleatório. O atleta precisa treinar o olho, visão periférica e dar o toque no balão para não cair e o tempo todo está batendo bola", explica Nandes, sempre sob a supervisão e autorização do técnico Igor Kokoskov.
Como tudo começou
Toda história de Fernando Pereira está ligada ao basquete mineiro. No Minas ele foi treinado por Raul Togni, pai de Raulzinho, e se tornou jogador. Conheceu o brasileiro do Utah Jazz ainda garoto e criou bom relacionamento com a família. Parou de jogar cedo, em 2008, em uma época de vacas magras para a bola ao cesto brasileira. Foi estudar e conseguiu, em São João del Rey, vaga na Federal e também como técnico de um time local. Ralou muito no início, nas mais variadas funções que um formando em educação física se habilita até uma mudança radical em 2015.
Foi o ano em que a Federação Mineira contratou um técnico argentino, Ricardo Bojanich, para trabalhar com a base do estado. Muito amigo de Rubén Magnano, ele dava treinos e clínicas nos clubes. Flávio Davies, que fora técnico de Nandes no adulto do Minas, o indicou para o cargo de assistente. Meses depois, Demétrius, que treinava o Minas, foi contratado pelo Bauru e Cristiano Grama subiu do sub-19 para o principal. Todos abaixo também subiram uma categoria e assim surgiu a oportunidade de retornar ao clube que o formou.
Já em junho de 2016, houve o reencontro com Raulzinho, que passava férias em Belo Horizonte e foi no clube treinar. Na oportunidade, Nandes apenas "pegou bola" para o jogador da NBA, mas um ano depois, já com a metodologia diferenciada sendo desenvolvida, não foi apenas um auxiliar do armador, mas sim seu técnico. "O Raulzinho deu um feedback muito positivo, disse que nunca tinha visto isso na NBA e fez o convite para ir até o Jazz, ficar na casa dele".
No dia 14 de janeiro de 2018, Nandes pegou o avião e foi pela primeira vez aos Estados Unidos. Viajou apenas com a expectativa de conhecer todas instalações do Utah Jazz e trabalhar em alguns treinos com Raulzinho. Logo no primeiro dia, foi ao ginásio para acompanhar a partida contra o New York Knicks. Assim como todos do time, chegou bem cedo e assistiu todo aquecimento.
Igor Kokoskov, técnico sérvio com quase 20 anos de experiência no basquete norte-americano entre NCAA e NBA, campeão em 2004 como assistente no Detroit Pistons e medalha de ouro no Europeu de 2017 no comando da Eslovênia fazia parte do staff do treinador Quin Snyder em Salt Lake City. Raulzinho foi o responsável pela apresentação de Nandes a todos. Igor agradeceu pelos treinos ao armador brasileiro nas férias e se sentou na arquibancada. Nandes viu, ali, a oportunidade de estabelecer uma relação mais forte e criticou o aquecimento dos jogadores do Jazz a Kokoskov.
"Ali minha vida mudou. Eu critiquei o aquecimento dele e ele me ouviu. Mostrei que os exercícios estavam aquecendo a área motora, mas precisava aquecer a área cognitiva também, para as tomadas de decisão. Ele me pediu para explicar mais e fui explicando, mostrando vídeos que eu tinha com o Raulzinho. No terceiro vídeo, ele pegou o celular da minha mão e ficou analisando, pedindo mais explicações. Em dez minutos ele ficou doido", relembra.
No dia seguinte, convocado pelo sérvio, Nandes foi ao ginásio para trabalhar. Mais cedo, foi ao Wallmart comprar todo material necessário: balões, lanternas, lasers, frisbees, bambolês... "Umas coisas meio doidas, ligadas à neuroaprendizagem", brinca com seu 'mineirês'.
As vítimas foram os armadores. Além de Raulzinho, o espanhol Ricky Rubio participou das atividades, com Igor acompanhando tudo. Foram 17 dias participando ativamente da rotina do time e, no final, o convite do técnico Quin Snyder para voltar na pré-temporada. Quando retornou ao Brasil, a primeira coisa que Nandes fez foi buscar um professor de inglês particular para desenvolver o novo idioma.
Outra mudança de rumo
Não houve qualquer acerto oficial ou contrato assinado, apenas um aperto de mão. Só que em maio de 2018, após o Houston Rockets eliminar o Jazz nos playoffs, Igor Kokoskov recebeu o convite para se tornar treinador do Phoenix Suns. Justamente o maior elo de Nandes na franquia de Utah. De qualquer modo, havia esperança ainda.
Em agosto deste ano, Raulzinho veio ao Brasil acompanhado do pivô Rudy Gobert para um camp voltado a crianças em São Paulo e com um pedido específico de Quin Snyder: Nandes deveria treinar o gigante francês; se ele gostasse, o plano de viajar para a pré-temporada do time poderia ser reativado.
Na quadra do Clube Alto dos Pinheiros, na capital paulista, Gobert foi orientado por Nandes durante 25 minutos. Trabalhou com bambolês, balões e lasers sob os olhares das câmeras da NBA. Gobert gostou muito.
Só que o pivô não estava muito interessado em se apresentar tão cedo ao seu time nos Estados Unidos e resolveu esticar as férias. Isso afetou diretamente o sonho de Fernando, porque não haveria mais tempo na agenda do Jazz para seus treinos específicos. Com isso, tudo voltava à estaca zero. Mais ou menos... "Pedi para o câmera da NBA os vídeos. Quando ele me mandou, repassei para o Igor. Ele viu e depois de três dias me mandou uma mensagem: quando você pode vir a Phoenix?". As passagens chegaram nos dias seguintes, assim como a reserva no hotel bem em frente ao ginásio dos Suns.
Em 14 de setembro, Nandes partiu pela segunda vez aos Estados Unidos, já com o inglês afiado. Kokoskov o buscou pessoalmente no hotel. "Ele me falou que não era uma data muito boa, porque já estava treinando jogadas, mas queria que eu fosse para o staff me conhecer, porque estava pensando em mim na próxima pré-temporada". O head coach apresentou as quadras, a academia, o escritório e toda estrutura do time no primeiro dia. Antes de irem para a quadra, Nandes pediu para apresentar novamente os conceitos dos seus treinamentos.
"A parede do escritório é o quadro, tudo um quadro branco. Usei a metade que estava vazia. O que era para durar 15 minutos, durou três horas. Por culpa dele, que ficou tão empolgado, que pedia exemplos, explicação. E meu inglês nos últimos seis meses melhorou bastante Depois disso, na primeira reunião, às nove da manhã, ele me apresentou para toda comissão técnica. Falou para o pessoal olhar para a parede, lá estava tudo escrito. Disse que tinha me trazido para sugarmos tudo, que eu era um cientista do basquete. Imagina o head coach falando isso! Então todo mundo quis ouvir, ninguém teve preconceito", conta.
Deandre Ayton, Dragan Bender, Mikal Bridges, Isaiah Canaan todos passaram pelos treinos. Ryan Anderson foi quem mais se interessou. "A maioria deles, com cinco minutos, já entendia rápido. O Ryan Anderson foi quem mais percebeu isso, dizia que é um jogador que precisa disso, de inteligência, não é muito físico. Ele foi quem mais me surpreendeu, ficava conversando comigo nos corredores".
A maior estrela dos Suns também se empolgou com o que fez. "Com o Devin Booker o trabalho foi mais básico, porque ele só pôde treinar com uma mão. Mesmo lesionado, ele se interessou muito pelo trabalho e fez movimentos mais simples, como bater para dentro, leitura, bandeja de esquerda, se acende a lanterna passa, se não vai para a cesta. Ele me via e já cobrava o treinamento do dia seguinte. Um cara fora de série, de uma inteligência absurda", explica. "No treino com balão, havia quatro pessoas ao redor. O balão não podia cair no chão, cheguei a colocar dois balões. Ele tinha que receber o passe, mandar de volta com a mão esquerda e não deixar os balões caírem. Cada técnico era um número, eu falava quatro e o correspondente passava, ele dava um tapa de volta e não deixava os balões caírem".
Durante uma semana, Nandes foi testado de todas maneiras possíveis pelos assistentes técnicos. Era questionado o tempo todo sobre o objetivo de cada exercício e passou a ser chamado também para outras atividades dos jogadores. No último dia, Igor e o general manager na época, Ryan McDonough, o convidaram para retornar em janeiro.
"No processo de repetição, os jogadores da NBA erram pouco, acertam 23 de 25, o cara é fera, está na melhor liga do mundo. Mas quando você vai para o processo aleatório, os exercícios que eu faço, o cara erra demais. Ele precisa entender que são os processos cognitivos que estão sendo alterados, dentro da sinapse, dentro dos neurônios. Precisam entender para estarem motivados. O Isaiah Canaan se interessou muito e para ele eu consegui explicar bem os conceitos, então ele absorveu a ideia de longo prazo. Errava bastante, mas entendia que era uma mudança de processos no cérebro. Um atleta que dribla um cone, outro cone, faz a bandeja, não está tão perto do jogo. Um atleta que está girando um bambolê, exige mais do cérebro, utiliza regiões similares às do jogo. O cérebro está sobrecarregado o tempo todo. O jogo é uma tempestade de sobrecargas. Tem que atacar, marcar, está livre, está marcado. Tem que fazer o atleta ficar sobrecarregado, não o tempo todo, mas buscar exercícios que fiquem mais próximos do jogo".
Ao que parece, Nandes tem conseguido isso. E está cada vez mais perto da NBA.
Fonte: Gustavo Hofman
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