O sonho olímpico da Nicarágua chega pelas ondas do WhatsApp
O campo é pequeno, acanhado, não tem estrutura específica para a imprensa. Mas Carlos Alfaro León se vira do jeito que dá. O jornalista da Radio Ya de Manágua pega uma cadeira e uma mesinha de plástico, daquelas de salão de festas, e senta do lado da cerca que separa o que é dentro do que é fora do campo. Ele coloca seu boné da seleção da Nicarágua de beisebol, posiciona os cartões em que anota cada jogada da partida e não para de contar pelo WhatsApp tudo o que acontece em campo. Quando o jogo para, vai rapidinho para perto do banco nicaraguense para fazer algumas fotos e volta. Não pode perder tempo, pois milhões de torcedores em seu país dependem da rapidez e precisão de seus movimentos.
Alfaro é o único jornalista nicaraguense que veio a São Paulo para a disputa do qualificatório para o beisebol dos próximos Jogos Pan-Americanos, a serem realizados em Lima em julho e agosto deste ano. A quantidade de profissionais na cobertura não é proporcional à importância do torneio para a torcida Nica (como os nicaraguenses se referem às coisas de seu país).
O beisebol é o esporte mais popular da Nicarágua e qualquer coisa que a seleção do país faz é motivo de grande expectativa dos torcedores. Uma paixão que se mantém mesmo diante de resultados discreetos e que aparecem apenas esporadicamente. Os Nica têm como principais glórias beisebolísticas medalhas de prata nos Pans de 1983 e 95 e um quarto lugar nos Jogos Olímpicos de 1996, além de pódios em torneios centro-americanos e do Caribe. A liga profissional tem apenas quatro equipes e é disputada por apenas cinco meses, mas o resto do ano é ocupada por uma competição semi-profissional com equipes de cada região. Uma estrutura modesta, mas que encanta Alfaro. Quando perguntado sobre o que o beisebol representa para os nicaraguenses, seus olhos brilham, o sorriso sai e ele diz apenas: "O beisebol na Nicarágua é tão lindo".
Só por ter em campo a camisa azul e branca com "Nicarágua" no peito, o Pré-Pan já é motivo para os nicaraguenses ficarem atentos ao que ocorre na Grande São Paulo. A estreia contra o Brasil, na última terça, era transmitida pela TV quando foi interrompida por chuva - a conclusão está prevista para esta sexta. Mas o jogo contra o México foi transferido para Ibiúna, no campo 2 do Centro de Treinamento da Confederação Brasileira de Beisebol e Softbol (CBBS), onde não há estrutura para a transmissão em vídeo. Assim, os nicaraguenses ficam de ouvido no rádio. Mas… se o jogo não está na TV ou na internet e há apenas um repórter à beira do campo, como isso é possível?
Aí aparece a capacidade de improviso de quem está acostumado a lidar com recursos limitados, a magia do rádio e também um trabalho em equipe azeitado. Alfaro é mais que um repórter, ele é os olhos da equipe de transmissão que está em Manágua. Ele não desgruda de seu celular e fica se revezando entre as anotações do jogo e o WhatsApp.
Do outro lado do aplicativo está a redação da rádio. E vai a mensagem:
“Óscar Félix pitcher zurdo. Hit de Ofilio, Vásquez a tercera, cuando el pitcher le pasaron la pelota, cometió error y anotó Vásquez. Vamos 5 - 0. El hit de Ofilio al center. El pitcher cometió error porque no agarró la pelota”
Segundos depois, essas informações chegam aos ouvintes da Radio Ya, que a dinâmica e exclamativa voz do narrador Moisés Ávalos Ruiz transforma de texto telegráfico em pura emoção:
“Hit de Ofilio Castro al centerfield. Wuillians Vásquez corre a la tercera. Más un hit a Nica pero... ¡EL PITCHER DE MÉXICO COMETE UN ERROR! ¡Óscar Félix no le agarró la pelota! ¡Le deja pasar la pelota! ¡ANOTA VÁSQUEZ! ¡NICARÁGUA CINCO, México cero!”
E assim vão as três horas e meia de jogo, vencido pelos Nica por 12 a 4. Alfaro envia por WhatsApp cada lance, e Ávalos narra como se estivesse vendo tudo. O repórter ainda fica de ouvido na transmissão para se certificar que tudo é interpretado da maneira correta ou que nenhuma mensagem tenha passado em branco. Quando surge alguma dúvida, ele telefona a um produtor da Radio Ya - ou recebe a ligação desse colega - para explicar com mais detalhes o que está acontecendo. "Preciso explicar bem, porque ele tem de imaginar a jogada e criar toda a narração em cima disso. Se alguma coisa não parece clara, melhor falar diretamente com eles", explica Alfaro.
A coordenação da equipe é fundamental. Enquanto não surge uma nova informação, Ávalos exercita sua capacidade de improviso e preenche os espaços vazios com comentários sobre a equipe, alguma história sobre os jogadores e, claro, os informes dos patrocinadores. A transmissão não é detalhada como uma feita com as imagens, mas é notável como o resultado final é convincente.
Até o papa atrapalhou
O qualificatório do Pan é mais que um torneio de beisebol, é também um exercício constante de jogo de cintura de jogadores, delegações e da organização, da busca por passagens aéreas até a definição da tabela. A Confederação Pan-Americana de Beisebol (Copabe) concedeu ao Brasil o direito de sediar o evento. A exigência era que todos os jogos fossem em estádios que pudessem para receber público. Com a estrutura bastante limitada para o beisebol no Brasil, só havia duas opções: o estádio Mie Nishi, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e o campo principal do CT da entidade, localizado em Ibiúna, a 61 km da capital paulista. Assim, a primeira fase, encerrada nesta sexta, se dividiu entre os dois estádios e as finais estão programadas para este fim de semana em São Paulo.
As dificuldades começaram antes mesmo de o primeiro arremesso ser feito. No último dia 15, menos de duas semanas antes da estreia, a Venezuela anunciou sua desistência. A equipe era uma das favoritas da competição, mas o governo local cortou a verba prometida para a viagem da delegação. Sem dinheiro para vir ao Brasil, restou aos venezuelanos desistirem. O Grupo B, com sede em Ibiúna, ficou com apenas Canadá, Colômbia e Panamá.
A chave do Brasil também teve seleções com problemas de viagem, mas de outra natureza. A Nicarágua também vive um momento de instabilidade política, mas conseguiu os recursos para a viagem. Mas sem direito a exageros.
A rota aérea mais tradicional e direta de um país centro-americano ao Brasil é com uma conexão no Panamá. No entanto, a Cidade do Panamá está recebendo a visita do Papa Francisco, e os preços das passagens para o país explodiram, extrapolando o orçamento nicaraguense. Assim, só uma parte da delegação Nica pôde fazer esse caminho. O resto do time se dividiu em duas levas: uma com um complicado voo Manágua - San Salvador (El Salvador) - Lima (Peru) - São Paulo e outra em Manágua - Santo Domingo (República Dominicana) - São Paulo. O time chegou aos pedaços a partir de 25 de janeiro e não teve tempo de se reunir para treinar antes da estreia contra o Brasil, no dia 29.
A República Dominicana teve mais problemas ainda para chegar. Turistas dominicanos e brasileiros podem ir de um país ao outro livremente, mas a República Dominicana exige um visto especial para esportistas brasileiros que vão competir em seu território. Pela regra de reciprocidade adotada pelo governo brasileiro nessas questões, os atletas dominicanos também precisam desse visto para atuar aqui. E isso pegou a delegação dominicana desprevenida.
Como a liga dominicana de beisebol se encerrou apenas na semana passada, os atletas não estavam disponíveis para a federação. Os trâmites para o pedido de visto foram feitos em cima da hora e não deu tempo de todos estarem com a documentação regularizada antes da estreia contra o México, no dia 29.
A situação só não ficou pior porque a CBBS interveio, pedindo para a embaixada brasileira em Santo Domingo dar uma atenção especial ao caso dos jogadores dominicanos e acelerarem o processo, e a Copabe mudou a tabela, transferindo a partida contra os mexicanos para esta sexta (1º de fevereiro). Assim, todos os vistos ficaram prontos em um dia.
Sem a certeza de que a documentação estaria em ordem, a federação dominicana não comprou as passagens aéreas. Teve de fazer de emergência. A delegação embarcou no dia em que, pela tabela original, estaria estreando e se dividiu em cinco levas, vindo ao Brasil pelas mais diferentes rotas pelas Américas. O último grupo chegou apenas às 9h da manhã de 30 de janeiro, cinco horas antes de entrar em campo para enfrentar o Brasil.
Jogo adiado por chuva, mesmo sob sol escaldante
Um dos mais fortes candidatos ao título, os dominicanos poderiam sofrer com esse périplo para chegar a São Paulo. Enfrentariam o time da casa sem aclimatação, treino e mesmo uma noite de sono minimamente decente. Chegaram ao estádio do Bom Retiro às 12h30, uma hora e meia antes do jogo. Mas a sorte foi generosa. Era uma tarde de sol impiedoso em São Paulo, como tem sido esse começo de ano em boa parte do Brasil, mas a chuva forçou o adiamento do jogo.
Bem, não havia chovido ainda, e, naquele dia, só choveria às 17h30, a tempo de realizar a partida. No entanto, havia chovido forte no dia anterior (29). Tão forte que interrompeu o duelo entre brasileiros e nicaraguenses na terceira entrada e deixou o gramado - de drenagem notoriamente ruim - tão encharcado que mesmo o México x Nicarágua, programado para às 10h da manhã do dia 30 já havia sido adiado. A esperança da organização é que mais algumas horas de sol forte deixaria o campo em melhores condições para as 14h, horário da partida do Brasil.
Após vistoriar o gramado, a República Dominicana disse que não jogaria naquele gramado. Torcedores brasileiros reclamaram, achando que se tratava de alguma malandragem dos caribenhos para adiar o confronto e poder descansar adequadamente. No entanto, jogadores brasileiros que também entraram em campo confirmaram informalmente que não havia condições. “O pé afundava a cada passo. Não dá para correr e tem jogador aqui com contrato com times americanos, só vieram com seguro. O cara não vai arriscar uma contusão”, disse Tiago Magalhães, defensor externo.
O gramado do Bom Retiro deixou a organização em uma situação delicada no Grupo A. A primeira rodada, a do dia 29, teve um jogo adiado porque a República Dominicana não havia chegado ao Brasil e um jogo interrompido por chuva. A segunda rodada foi adiada por falta de condições do campo. Era preciso repor os quatro jogos antes do sábado, data prevista para as semifinais.
Menos mal para a Copabe e a CBBS que, com exceção da desistência venezuelana, as coisas no Grupo B, o de Ibiúna, estavam caminhando. Como o grupo se transformou em um triangular, havia apenas uma partida por dia. Era possível jogar antes das chuvas de verão de meio para o fim da tarde. E, com um campo de drenagem boa, a chuva da véspera não causava tantos problemas. O Canadá venceu o Panamá (5 a 1) na abertura do torneio em 29 de janeiro e a Colômbia bateu os mesmos panamenhos (10 a 4) no dia seguinte.
Canadenses e colombianos já estavam classificados para as semifinais - e para o Pan de Lima - e precisavam apenas decidir quem ficaria em primeiro lugar da chave. Dessa forma, a relevância do jogo se tornou melhor e foi possível transferir o Grupo A para Ibiúna. A última quinta (31) teve rodada quádrupla. Às 10h da manhã, Brasil e México (13 a 3 México) se enfrentaram no campo 1 do CT e Nicarágua e República Dominicana (10 a 3 República Dominicana) atuaram no campo 2. Às 15h, Brasil e República Dominicana se enfrentaram no campo 1 (3 a 2 para os dominicanos), enquanto nicaraguenses e mexicanos duelavam no 2 (os 12 a 4 Nica transmitidos por Carlos Alfaro pelo seu WhatsApp).
Sonho olímpico e nível técnico alto
Os resultados deixaram o Brasil praticamente eliminado. Só uma lavada homérica sobre a Nicarágua, combinada a uma vitória dominicana sobre os mexicanos, classificariam os brasileiros para as semifinais (e para o Pan). Não deu: logo na abertura da rodada final - que, na realidade, era a primeira rodada adiada - o México venceu a República Dominicana por 3 a 2, resultado que classificou os dominicanos e acabou com as possibilidades brasileiras.
Apesar da derrota contundente contra o México, o resultado que mais dá motivo para lamentação ao Brasil são os 3 a 2 contra os dominicanos. O arremessador Felipe Natel, chamado internamente de “Pelé”, teve uma atuação memorável. Formado no beisebol japonês, ele tem um estilo com bolas mais lentas e com muito efeito. Isso desconcertava os rebatedores dominicanos, que preferem bolas mais rápidas e retas. O abridor levou o no-hitter até o segundo eliminado da quinta entrada e teve seis entradas completas sem ceder corrida alguma.
O Brasil vencia por 1 a 0 e bastava fechar as três entradas finais. André Rienzo, melhor abridor brasileiro, subiu ao montinho. Mas os dominicanos estavam preparados. Dois home runs seguidos deixaram o placar em 2 a 1 para os caribenhos. Na nona entrada, o Brasil conseguiu um par de rebatidas e empatou o jogo a uma eliminação do final. Poderia ter virado, não fossem dois erros de corredores na terceira base. Mas, na parte de baixo da nona entrada, duas rebatidas em cima de Thyago Vieira e um erro do catcher Daniel Molinari permitiram a vitória dominicana por 3 a 2.
A derrota doeu, pois uma vitória deixaria o Brasil em boas condições de lutar pela classificação (bastaria vencer a Nicarágua nesta sexta). Mas mostrou que a seleção é capaz de atuar contra equipes fortes.
O Pré-Pan tem nível técnico surpreendentemente alto. Como a temporada dos Estados Unidos está em recesso, vários jogadores vinculados à equipes da MLB foram liberados para jogar. Não os atletas de ponta, que formam o elenco principal das grandes ligas, mas algumas das principais promessas e até veteranos que querem ganhar ritmo de jogo antes de se apresentar para a pré-temporada norte-americana, na segunda quinzena de fevereiro. Além disso, jogadores importantes das fortes ligas profissionais da América Latina também se apresentaram, com exceção dos que estão na disputa da Série do Caribe, uma espécie de Copa Libertadores do beisebol que reúne os campeões nacionais latino-americanos e encerra a temporada na região.
Assim, o Brasil pôde contar com André Rienzo, ex-Chicago White Sox e Miami Marlins e atualmente no beisebol mexicano, e Thyago Vieira, membro do bullpen do time principal dos White Sox. O Canadá trouxe Michael Saunders, do Colorado Rockies, que disputou o All-Star Game há apenas três anos, e Dalton Pompey, do Toronto Blue Jays. O México veio com uma seleção de jogadores que atuam nas suas ligas profissionais, as que mais crescem nas Américas. A República Dominicana tem várias promessas da MLB, assim como Nicarágua, Panamá e Colômbia.
Conversei com representantes de cinco equipes e todos eles diziam mais ou menos a mesma coisa: “temos poucas oportunidades de reunir jogadores desse nível para alguma competição. Ainda que seja apenas o qualificatório para o Pan, era uma boa chance de fazer nossa seleção jogar junto”. A oportunidade é rara porque o beisebol internacional depende muito da agenda da MLB, que centraliza os principais atletas das Américas - e alguns da Ásia.
No Pré-Pan, quatro seleções se classificam aos Jogos Pan-Americanos, onde se juntarão a Cuba, Porto Rico, Peru e Argentina. Os dois melhores terão vaga nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, mas, em Lima, dificilmente as seleções terão o mesmo nível visto no Brasil. Cuba ainda levará o que tem de melhor entre os jogadores que atuam na ilha, mas os times da MLB estarão no meio da temporada e não devem liberar seus atletas.
A Nicarágua, por exemplo, não pôde contar com apenas cinco jogadores, vetados por franquias da MLB com as quais têm contrato. De resto, o que há de melhor no beisebol Nica está no Brasil. O que justifica todo o esforço de Carlos Alfaro e da Radio Ya para levar todas as emoções do Pré-Pan para a torcida nicaraguense. Um esforço que se pagou: a Nicarágua encerrou a primeira fase batendo o Brasil por 6 a 2 e conquistando uma surpreendente classificação para as semifinais, garantindo a vaga aos Jogos Pan-Americanos e mantendo vivo o sonho olímpico. Uma emoção que todos em Manágua puderam acompanhar na voz de Moisés Ávalos Ruiz e no WhatsApp de Carlos Alfaro.
Fonte: Ubiratan Leal
O sonho olímpico da Nicarágua chega pelas ondas do WhatsApp
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