Entenda o acordo entre a MLB e Cuba para a contratação de jogadores da ilha
Foram três anos de negociações, que tiveram uma visita presidencial, uma rara trégua entre liga e sindicato, um amistoso em solo estrangeiro e milhões gastos em lobby com congressistas. O resultado de tudo isso foi anunciado nesta quarta: a Major League Baseball, a MLBPA (sindicato dos jogadores da MLB) e a FCB (Federação Cubana de Beisebol) assinaram um acordo que permitirá a jogadores cubanos defenderem clubes da liga norte-americana sem precisarem desertar.
O tema é rico pela repercussão jurídica, esportiva e política. Por isso, preparei um resumo em forma de perguntas e respostas do que há de mais relevante nesse acordo que pode, enfim, acabar com o isolamento de um dos países mais tradicionais do beisebol mundial.
O que diz o acordo entre a MLB e a Federação Cubana de Beisebol?
Os jogadores cubanos serão categorizados como “profissionais” e “amadores” (vou colocar entre aspas porque os termos não estão sendo usados na forma como costumamos usar no Brasil).
Os "profissionais" são todos os jogadores que têm 25 anos ou mais e atuam há seis ou mais temporadas na SNB (Serie Nacional de Beisebol, a liga cubana). Esses são agentes-livres, podem assinar com qualquer franquia da MLB quando quiserem. Um percentual entre 15 a 25% do bônus de assinatura (o que, no futebol brasileiro, chamamos de "luvas") é destinado à FCB. O restante é do jogador, que receberá seu salário integral em todos os seus demais contratos ao longo da carreira. O atleta terá um visto de trabalho nos Estados Unidos e no Canadá e não haverá restrição alguma a ele em Cuba. Ele pode levar seus familiares para morar consigo na América do Norte e poderá voltar a Cuba durante as férias, inclusive defendendo a seleção cubana em torneios internacionais.
Os “amadores” também podem se transferir para a MLB, nos mesmos termos dos profissionais. No entanto, eles não são agentes-livres e a saída depende da liberação da Federação Cubana.
É um acordo inédito?
Com o beisebol cubano, sim. Mas o modelo é o mesmo adotado para a contratação de jogadores da NPB (liga japonesa), da KBO (liga sul-coreana) e da CPBL (liga taiwanesa). A diferença é que o percentual do bônus de assinatura repassado à federação cubana é, nos casos asiáticos, destinado aos clubes que os jogadores defendiam.
Como era antes?
O modo mais comum era a deserção. Para isso, o atleta tinha de fugir de Cuba de alguma forma - escapando da delegação durante uma viagem internacional da seleção cubana ou pegando um barco para sair da ilha - e pedir asilo para fixar residência em um país neutro (Costa Rica, Espanha e ilhas caribenhas eram os destinos mais comuns). Dessa nova casa ele negociava sua transferência para a MLB e, aí sim, recebia permissão para trabalhar nos Estados Unidos.
Era um processo extremamente arriscado. O atleta que tentasse fugir durante alguma viagem da seleção cubana corria o risco de ser pego, mandado de volta para Cuba e nunca mais ser convocado para a seleção. Alguns eram banidos até de seus clubes na SNB. Os que tentam escapar pelo mar ficam à mercê de embarcações improvisadas, normalmente sem a menor condição de segurança e de navegabilidade.
Nos dois casos, a fuga é normalmente planejada por agentes. Mas não há controle sobre essa atividade, e muitos dos empresários enganam jovens cubanos para pegar dinheiro e largam os atletas (que, lembrando, não abandonaram apenas seu país, mas também sua família e seus amigos), que não têm estrutura para se manter em uma nação desconhecida para a qual são enviados.
Há relatos dantescos de acontecimentos com atletas cubanos. Yoenis Céspedes, hoje estrela do New York Mets, viu seu barco quebrar e ficou à deriva até chegar a uma ilhota nas Ilhas Turks e Caicos. Ele e sua família precisaram matar uma iguana, uma gaivota e dois caranguejos para se alimentar, sem saber se seriam encontrados. Dias depois, o resgate chegou. A fuga de Yasiel Puig, do Los Angeles Dodgers, foi planejada por um cartel de traficantes mexicanos, que o manteve como refém até que um empresário pagasse os US$ 250 mil prometidos pela ajuda.
Esses dois jogadores ainda chegaram aos EUA, alcançaram a fama e ganharam milhões de dólares. Mas muitos fogem na esperança de um contrato que nunca chega. Acabam atuando em ligas de outros países ou mesmo abandonando o beisebol e procurando empregos comuns.
O que acontece se o jogador não quiser se submeter aos termos deste acordo?
Ele continua podendo desertar, mas essa opção se tornaria menos atraente ainda. Além de todo o risco da fuga de Cuba, o jogador teria de ficar na geladeira antes de jogar nos EUA. Pelo acordo anunciado nesta semana, um atleta que fugir da ilha só poderá acertar com uma franquia da MLB no segundo mês de julho após a deserção. Se ele escapar em agosto de 2019, só pode assinar em julho de 2021, por exemplo.
Muda alguma coisa para os cubanos que já atuam na MLB?
Não. O acordo atual vale a partir desta semana e para os cubanos que se transferirem a partir de agora. Quem o fez antes segue como um desertor aos olhos do governo cubano e não tem direito a defender a seleção do país, muito menos de voltar à ilha para visitar seus familiares (qualquer tentativa tem de ser negociada pelo atleta, individualmente, com o governo cubano).
Há uns anos o governo cubano havia liberado jogadores a atuarem no exterior. O que aconteceu com esse acordo?
Ele nunca foi válido nos Estados Unidos. Em 2013, Cuba criou um mecanismo para que seus jogadores - de qualquer modalidade - pudessem atuar profissionalmente em ligas estrangeiras. Para isso, teriam de destinar uma parte de seus salários para o Inder (Instituto Nacional de Esportes, Educação Física e Recreação) e continuar defendendo a seleção cubana. Essa lei permitiu que vários cubanos fossem legalmente para a LMB (liga mexicana) e a NPB (japonesa).
O problema dessa regra é que parte do salário tem de se destinar a um órgão do governo cubano. Pelo embargo econômico imposto pelos Estados Unidos à ilha, um clube da MLB não poderia repassar seu dinheiro diretamente ao Inder. Por isso, esse mecanismo nunca teve efeito nas grandes ligas americanas. Quem fez uso dele e acabou na MLB foi Yulieski Gurriel. O defensor interno do Houston Astros ficou dois anos no beisebol japonês antes até decidir desertar, podendo enfim se transferir aos Estados Unidos. Alfredo Despaigne, outra estrela cubana, está há cinco anos no Japão por meio dessa lei.
Qual o lado positivo do acordo anunciado nesta semana?
Há vários. O primeiro é criar um caminho juridicamente legal para os jogadores cubanos irem aos Estados Unidos. Isso elimina todo o risco das tentativas de fuga e também o afastamento dos jogadores de seus familiares que ficaram na ilha. Esse é o argumento mais citado pelos jogadores cubanos que já estão na MLB quando celebraram o anúncio desta quarta.
Além disso, não há ingerência de Cuba sobre o destino dos jogadores “profissionais”: se eles receberem uma proposta e quiserem sair, estão liberados. Não é preciso negociar com o governo ou com seu time na SNB. Outro fator positivo é que, tirando a taxa de transferência, o jogador ficará com todos os salários de sua carreira. Por fim, a torcida pode celebrar o fato de que uma das maiores fontes de talento do beisebol mundial não está mais isolada da principal liga do planeta.
E qual o lado negativo?
O principal é a tal taxa de transferência que a Federação Cubana receberá. Oficialmente a federação cubana é uma entidade independente, mas muitos americanos acreditam que, no final, o dinheiro irá para o governo cubano. Isso criou uma rejeição em parte da opinião pública americana e, dependendo do volume das reclamações, isso pode inviabilizar o acordo.
Outro elemento que merece atenção é a política que a FCB adotará para os jogadores categorizados como “amadores”. Pelo acordo, eles podem ir à MLB, mas necessitam de liberação. Se a federação for rígida na negociação desses atletas, pode limitar a capacidade de desenvolvimento de vários jovens talentos, que só poderão ir aos EUA quando estiverem amadurecido - e terem de dar retorno imediato do investimento, sem muito tempo para adaptação ou ajuste técnico.
Há alguma pendência legal?
Teoricamente não. O acordo entre a MLB e a FCB está dentro das regras estabelecidas pelo governo dos Estados Unidos (na época do governo de Barack Obama) e Cuba para empresas americanas que querem investir na ilha. No entanto, o governo de Donald Trump já disse várias vezes que pretende reverter o processo e que todos os americanos que investem em Cuba devem estar alertas para a possibilidade de a lei mudar. Por isso, há uma chance de a MLB e de seus clubes esperarem um sinal verde de Washington antes de saírem contratando cubanos.
Ainda não se sabe. Trump sempre deixou claro que não gosta do acordo comercial feito por Obama com o governo cubano. Além disso, muitos cubano-americanos - que formam uma força eleitoral importante na Flórida - rejeitam qualquer coisa que se assemelha a uma conversa entre o governo cubano e os EUA. Marco Rubio, senador do Partido Republicano pela Flórida e filho de cubanos, já disse que pediu ao Departamento de Estado (equivalente ao Itamaraty americano) e à Casa Branca para revisar o acordo entre MLB e FCB.
No entanto, nos últimos anos a MLB investiu pesado no seu escritório de Washington, sobretudo em lobby com congressistas ligados a relação entre EUA e Cuba. Outro fator importante é que o Partido Republicano tem outras pautas mais importantes para negociar com o Congresso no momento, como a aprovação do orçamento para 2019 (que inclui a verba para a construção no muro na fronteira com o México).
Por isso, é difícil que o governo Trump anuncie que aprovou o acordo entre MLB e os cubanos. Mas é bem maior a chance de Washington dar um discreto sinal verde, não dando muita importância para o tema em comunicados públicos, mas, na esfera particular, dando sinais à liga que ela pode ir em frente com sua política. É com essa perspectiva que as grandes ligas trabalham.
Fonte: Ubiratan Leal
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