Quando a maior disputa não é o set da partida: a vitória da jogadora transsexual Thiffany de Abreu
Thiffany Pereira de Abreu nunca nasceu Rodrigo. Ao contrário do que constava na certidão de nascimento e na antiga carteira de identidade, verdade é que Rodrigo Pereira de Abreu já nasceu Thiffany. E por isso mesmo, desde muito cedo, ela sentiu o gosto amargo do preconceito. De família pobre do interior de Goiás, encontrou no vôlei uma possibilidade de realizar sonhos: o primeiro, ser profissional e estar em quadra, o segundo, que seria consequência, juntar dinheiro para se transformar naquilo que sempre foi, mulher.
Ainda como Rodrigo, chegou a atuar na liga profissional e quando conseguiu a quantia necessária para trocar de sexo, cerca de R$ 30 mil, teve que abandonar o vôlei em 2012. Pensava que uma transsexual não teria espaço na elite da liga feminina. Felizmente, estava errada, e o desfecho foi diferente. Um roteiro importante estava a espera de Thiffany.
Depois de passar em testes físicos que comprovaram que o nível de testosterona, o hormônio masculino presente no corpo, estava abaixo dos 10 nanogramas (ng), considerada a concentração média entre as mulheres, teve o aval da Federação Internacional de Vôlei para atuar em ligas femininas no início de 2017. Defendendo o Golem Palmi, na segunda divisão italiana, voltou para as quadras e então decidiu que era hora de retornar ao Brasil para aprimorar a parte física e, quem sabe, realizar outro sonho: atuar no país natal. Passou a treinar no interior de São Paulo até que recebesse a grande notícia: a confirmação de que poderia disputar a Superliga de Vôlei no Brasil.
Thiffany tornou-se a primeira transsexual a disputar a competição e a primeira palavra que vem a cabeça é SENSACIONAL. Quando leio “a primeira”, meu peito se enche de alegria, porque sabemos que isso representa um rompimento, uma conquista, significa a possibilidade de que ela possa ser “a primeira de muitas”, uma medida inclusiva e inédita na modalidade. Quando soube da notícia, passei a acompanhar os comentários nas redes sociais e, infelizmente, como esperado, vi muitos criticando, entre eles o da ex-jogadora de vôlei Ana Paula publicado no Twitter: “Não é preconceito, é fisiologia”, justificou. Será mesmo?!
Apesar de discordar da opinião da Ana Paula, decidi pesquisar um pouco mais sobre o tema. Queria saber quais foram os primeiros movimentos que aconteceram nesse sentido no esporte e como as pessoas reagiram a eles. Encontrei a notícia que nos Estados Unidos, depois de três anos de batalha, uma transsexual também recebeu a permissão para atuar no esporte neste ano. E tal qual aconteceu no Brasil nessa última semana, muitos torceram o nariz para a decisão. O argumento é sempre o mesmo: “é injusto com as adversárias, ela tem vantagens físicas em comparação a mulheres”.
A comunidade científica também fica dividida sobre o tema. Apenas com a supressão hormonal, a “vantagem” é reduzida? Por outro lado, há pesquisas que mostram que a medida pode, inclusive, prejudicar o atleta. Joanna Harper, médica no Providence Portland Medical Center, em Oregon, que aconselhou o COI sobre suas últimas políticas de transgêneros, publicou um estudo em 2015 em que descobriu que a terapia hormonal fez com que os corredores de estradas biologicamente do sexo masculino ficassem bem mais lentos que as próprias mulheres.
O estudo apontou que uma competidora trans ficou 12% mais lenta, executando apenas um ano de supressão de testosterona, por exemplo. Além disso, Harper estudou sete outros corredores de distância entre homens e mulheres que tiveram a mesma experiência. Enquanto esses atletas conseguiram manter a altura e a massa óssea no início de suas transições de supressão hormonal, todos os sete perderam massa muscular e, eventualmente, apresentaram níveis mais baixos de testosterona do que mulheres biológicas.
Nos Estados Unidos, país em que na minha opinião as questões de gênero são tratadas com muito cuidado e recebem mais atenção do que no Brasil, a ativista de direitos humanos e diretora do maior grupo que advoga em prol das causas LGBT, Ashland Johnson, disse em entrevista que é necessário que haja estudos a longo prazo sobre os atletas trans realizados durante a carreira no esporte. Johnson frisa que os níveis de testosterona não garantem resultados; existem muitas outras variáveis em torno de atletas trans que também precisam ser estudadas, como genética, idade e etnia.
A questão passou a ser avaliada pelo Comitê Olímpico Internacional em 2003, entendendo que o esporte, assim como a sociedade, precisava reconhecer o direito de igualdade para atuação de atletas trans, mas que seria necessário passarem por uma terapia de reposição hormonal por pelo menos dois anos antes da competição. Constavam também os requisitos de cirurgia de reconstrução genital e os documentos legais.
No ano anterior aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o COI mudou esses requisitos na tentativa de tornar a competição mais inclusiva, determinando que as mulheres trans não representam uma vantagem injusta no esporte, desde que os níveis de testosterona sejam compatíveis, e excluiu o processo cirúrgico, entendendo que não tinha nenhum impacto sobre o desempenho de um atleta.
Não há dados específicos sobre o número total de atletas trans que estão competindo em nível de elite, mas alguns casos de atuação de transgêneros já aconteceram em competições internacionais. Em 2016, o americano Chris Mosier tornou-se o primeiro homem trans a competir no mundial da modalidade duatlo. No mesmo ano, duas mulheres trans se qualificaram para competir na Olimpíada do Rio representando a Grã-Bretanha, mas acabaram não vindo ao Brasil, porque temiam ser "expostas e ridiculizadas".
E apesar dos questionamentos sobre como, de fato, o status biológico pode interferir no esporte e da necessidade de estudos mais profundos que consigam dar uma dimensão maior dos próprios efeitos da supressão hormonal, é esse medo do ridículo e da exposição que não pode der vivenciado por atletas trans (ou por qualquer transsexual)! Acredito que a compreensão e aceitação de que Thiffany nunca nasceu Rodrigo é muito mais importante do que o argumento de “injusto”, de “vantagem”...
Proponho o caminho contrário: não seria, então, elemento de “vantagem” para aqueles que nasceram e cresceram sem se sentir estranhos dentro do próprio corpo? Qual a vantagem emocional daqueles que nunca sofreram com o preconceito? Daqueles que não receberam olhares na rua, na escola, na vida? O exercício de tentar se imaginar na pele do outro é sempre válido. O esporte tem que ser justo, mas tem também que ser inclusivo. Solo, chão, base, para aquilo que queremos para a sociedade atual e futuras gerações: igualdade!
Quando a maior disputa não é o set da partida: a vitória da jogadora transsexual Thiffany de Abreu
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